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Entrevista

Brasil projeta sua força: cinema nacional cresce 10% e desafia o cenário mundial

Enquanto grandes mercados sofrem com retração e dependência de Hollywood, o Brasil registra aumento de 10% em bilheteria e renda, impulsionado por produções nacionais e novas estratégias de expansão de salas.

30 de setembro de 2025 - Atualizado em 30 de setembro de 2025 às 10h21 por REVISTA LIDE

Expocine-3972Marcelo Lima, CEO da Tonks e fundador da ExpoCine. (Foto: Fabiano Battaglin/ Divulgação)

O mercado de exibição brasileiro vive um momento de expansão que desafia a lógica mundial. Em meio à retração de países como China (-23%), Argentina (-19%) e Estados Unidos (-3%), o Brasil alcançou um crescimento de 10% em bilheteria e renda de 2023 para 2024. Hoje são 3.500 salas de cinema distribuídas por todo o país, resultado de políticas de financiamento e de uma produção nacional que, mais do que nunca, sustenta o setor.

Neste sentido, o mercado de exibição brasileiro está pujante em termos de crescimento de números de salas de cinema, na contramão de diversos mercados pelo mundo, principalmente daqueles dependentes de conteúdo norte-americano.

Potencial

“É claro que a gente ainda tem muito que crescer e, principalmente, evoluir. Há um desafio enorme hoje em termos mais salas por complexo. Com o crescimento do mercado de produção local, há poucas salas por complexo para receber estas produções. Hoje a média de salas por complexo é de 4 salas. O ideal é a gente ter, atualmente, entre 6 a 8 salas. E tudo isso se deve a quantidade de filmes nacionais que temos no mercado hoje. Esses filmes, somados aos filmes estrangeiros, resultam em mais de 800 opções, alguns anos, 900 por ano, a serem escoadas para os cinemas. Temos esse desafio que precisa ser enfrentado no decorrer dos próximos dois anos”, explica Marcelo Lima, CEO da Tonks e fundador da ExpoCine.

Lima também é criador do Cine Marquise e atua como um importante analista e consultor na indústria audiovisual e de cinema, sendo uma figura central no mercado exibidor. Confira entrevista completa, que traz ainda a análise de Marcelo Lima sobre os impactos do streaming, o avanço de tecnologias como IA e projeção a laser, além de perspectivas para coproduções internacionais, regulação, incentivos e o papel da ExpoCine como maior encontro da indústria na América Latina, reunindo mais de 1900 profissionais e movimentando mais de R$ 2 bilhões em bilheteria.

No Brasil, a receita de bilheteria ainda responde pela maior parte do faturamento dos exibidores. Quais caminhos o senhor enxerga para diversificar receitas, como eventos alternativos e corporativos, games e transmissões ao vivo nas salas?

Há diversos caminhos hoje e os exibidores têm testado soluções para diversificar essas receitas. É lógico que você tem um cinema ali, que é uma operação extremamente cara. Hoje em dia o investimento para implantar uma sala está entre 1,5 milhão e 2 milhões. Além disso, se considerarmos o momento de lançamento de filmes, tudo o que já foi feito previamente, e que toda quinta-feira entramos com novos produtos com a virada da programação semanal, cria-se um desafio de ser criativo diante de tantas demandas que entram. Dessa forma, muitos exibidores dependem das campanhas publicitárias que os distribuidores fazem para dar conta da operação do filme e conseguir ter resultados. A melhor solução seria os filmes terem melhores resultados e o cinema atender esses resultados com salas grandes que conseguem dar conta e pagar o plano de negócio.

Quando falamos de qualquer novo produto, literalmente, temos que vender e pensar caso a caso. Um evento ao vivo, por exemplo, como a transmissão da final da Champions League, que tem tido algum sucesso, é uma única sessão de um “tiro só”. Se você não lotar aquela sala, não tem como repetir, não há replay, não há um conteúdo gravado que você pode repetir três, quatro vezes ao dia, que é o caso de um filme. Tudo fica um pouco mais desafiador e custa mais caro para ser realizado. Mas os exibidores têm se organizado bastante para estarem mais preparados para esses conteúdos alternativos, tanto como plano de negócio, como também para encaixar na lista de receitas.

Há outras soluções, também, que têm funcionado bastante, como festas de aniversário e a venda de mídia em tela. O trabalho com games é um pouco tímido ainda porque é preciso ter uma qualidade de internet muito boa e um espaço maior nas salas para que o pessoal tenha uma arena praticamente. Também é importante destacar o sucesso dos baldes temáticos, que têm ajudado no aumento do share das bombonieres, assim como os grandes sucessos de bilheteria que vem, pelo menos a cada dois meses, e alavancam as vendas.

A diversificação está acontecendo, de uma forma bem segura para os exibidores para que eles não corram riscos à toa em relação a potenciais fracassos de alguma tentativa de investimento. Principalmente após duas crises seguidas (pandemia seguida de greve).

Como a entrada de streamings no mercado impactou o modelo de negócios das distribuidoras e exibidoras? O streaming é concorrente direto ou pode se tornar parceiro estratégico?

A entrada dos streamings, do ponto de vista inicial, é mais impactante para o mercado de consumo de entretenimento de casa. Com certeza, a TV por assinatura e a TV aberta são muito mais impactadas que o cinema. Sempre defendo que o concorrente do cinema é qualquer atividade de entretenimento externa, como um grande show. Vou dar o exemplo do Rock in Rio e do The Town. Quando há esses dois eventos, as vendas dos cinemas do Rio de Janeiro e de São Paulo despencam. Quando você vai para o interior e um circo chega naquela cidade, as vendas do cinema despencam. O impacto do streaming no cinema, aparentemente, não é tão forte do ponto de vista da concorrência direta.

Por outro lado, há sim um impacto em relação às janelas de lançamento. Cada vez mais, as plataformas de streaming têm forçado comercializações junto com as distribuidoras para diminuir essa janela. As distribuidoras, às vezes, viram reféns de negociações apertadas, e isso precisa ser regulamentado pelo governo local para conseguir segurar e sustentar o nosso mercado de forma mais sustentável e segura.

Tivemos, há pouco, o caso do filme “Homem com H”, com resultados robustos e os cinemas foram pegos de surpresa porque logo após 45/47 dias do lançamento nos cinemas, o filme já estava no streaming. Isso é muito danoso, o filme ainda tinha força para conseguir captar recursos via bilheteria de cinema. Então, isso realmente está impactando do ponto de vista de melhorar a bilheteria local.

Outro exemplo foi o novo “Superman”, cujas rendas caíram drasticamente quando o título foi anunciado em uma plataforma de streaming.

Eu sempre digo que quem perde é mais o filme do que o cinema. Um título que poderia fazer 800 mil ingressos faz 500 mil, ou um filme que poderia fazer 300 mil ingressos faz 200 ou 100 mil. Na grande maioria dos cinemas, 85% da renda de um filme é conquistada na primeira e segunda semanas. Os demais 15%, é via carreira de cauda longa. Essa carreira é muito importante para valorizar até mesmo o passe do filme, em janelas futuras. Diminuindo isso perde-se sua força.

A tecnologia sempre esteve no DNA do Grupo Tonks. Quais inovações em exibição e experiência do público devem pautar o futuro das salas de cinema no Brasil?

Acho que, principalmente, quando falamos de IA e exibição, o uso dessa tecnologia nas operações vai começar a pautar o nosso mercado. Já há um movimento interessante nas soluções mais simples, principalmente no escoamento de atendimento ao cliente. Até pouco tempo atrás, 100% das vendas eram feitas em uma bilheteria e, hoje, essas vendas estão separadas em quatro canais: autoatendimento, online, desktop/aplicativo e bilheteria. Essa demanda tem acontecido e a IA entra como um assessor imprescindível para ajudar a entender uma montanha de dados e comportamentos para melhorar a experiência do usuário.

Na área de SAC (serviço de atendimento ao consumidor), por exemplo, de redes sociais, boa parte dos exibidores já utilizam robôs para realizar o atendimento e fazer a triagem, diminuindo a demora no atendimento do cliente e dando respostas de acordo com diagnósticos passados.

A IA, com certeza vai dominar a operação como um todo, entregando resultado de relatórios para uma tomada de decisão mais rápida e certeira.

A outra questão também é a forma da divulgação. Cada dia está mais difícil impactar o público. Alguns anos atrás, fazer investimento em jornais, TV´s e rádios era a receita certa para o sucesso. Hoje é completamente insuficiente. Temos demanda para redes sociais de diversos formatos, que lidar com diferentes times de influenciadores para cada filme, e cada projeto.

Já na área de projeção e com,eu acho que o som chegou a um ponto de quase limite da perfeição. Digo “quase” porque nós seres humanos sempre nos superamos, né? Não sei se dá para melhorar os sons imersivos, como o Dolby Atmos. Já na projeção, além dela em si, que hoje é a laser. Há projetos pilotos para se trabalhar com telas de LED, acabando de vez com a projeção e entregando altos níveis de contraste. Embora eu ache que os painéis de LED ainda estão longe de um valor de escala razoável para implantação de cinema, o tempo vai dizer o que vai significar trabalhar com este tipo de tecnologia dentro dos auditórios.

Em relação ao conforto e uso de salas, eu acho que já está se consolidando duas opções de mercado: as poltronas tradicionais, com salas populosas, estão perdendo espaço para poltronas premium, de largura maior, e as salas VIP, que são reclináveis. Nesses casos, depende do local e da aplicação. As salas VIP´s tem um desafio enorme que é o alto custo por poltrona e esse custo, quando repassado para o cliente acaba elitizando o consumo do cinema. A versão premium, que é uma poltrona mais confortável que as tradicionais, consegue colocar mais poltronas em uma sala só e ter um resultado de preço médio de ingresso mais em conta.

Em resumo, há diversas ações no quesito tecnologia que estão sendo melhoradas e evoluídas de forma rápida. A questão da projeção e som estamos chegando em situações incríveis e, logicamente, o conforto das poltronas. Algo que tem caído em desuso é a tecnologia 3D. Esperava-se que todos os filmes fossem todos 3D nos dias atuais, mas não e provavelmente, não vai ter uma força de crescimento como se esperava há alguns anos atrás. O 2D ainda reina, com raras exceções, como é o caso de Avatar.

O que ainda falta para o mercado brasileiro consolidar-se como um player de relevância global no audiovisual? É uma questão de regulação, incentivos ou de escala de investimento privado?

Temos conteúdos de ótima qualidade. O nosso nível de quantidade de produções que são lançadas anualmente beira o nível americano, sendo que o americano consegue exportar o conteúdo e a gente ainda não consegue.

É claro que os investimentos públicos precisam ser democráticos. É a partir dessa liberação democrática de recursos que conseguimos encontrar grandes artistas e, a partir deles, entregar para a iniciativa privada para que ela entregue orçamentos com pensamento de grandes investimentos para criar, igualmente, grandes produtos. Pelo menos, é assim que eu acredito que a roda pode funcionar de forma mais sustentável.

Esses incentivos precisam ser mais previsíveis e não têm acontecido isso. Basicamente, as regras mudam a todo momento e há uma certa dificuldade nisso. Na questão da escala de investimentos privados, precisamos nos organizar, tanto com regulamentação e incentivos, para que o lado privado sinta um pouco mais de segurança. A nossa indústria local tem avançado bastante, as organizações públicas cada vez mais tem noção da nossa importância do ponto de vista internacional, vide a presença de agentes públicos em grandes eventos internacionais, como Cinemacon, SXSW e Cannes. Eles entendem que há um mercado mais do apenas “curioso” que pode ser explorado e o investimento privado está sempre de olho nisso para que a gente tenha mais orçamentos, para que a roda começe a girar mais rápido e, logicamente, gerar resultados não só internamente, como também que possamos exportar.

Podemos contar nos dedos os países que fazem isso de forma consistente: Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão. Nem a China, nem a Índia nem a Nigéria têm escala para exportação. A França já teve um mercado muito melhor, hoje é mais tímida nisso, mas é considerada um case que podemos nos inspirar e sustentar as políticas que foram feitas na década passada.

Há muitos desafios, mas eu já vejo uma integração maior entre os agentes públicos e privados para que a gente tenha um mercado muito mais pujante no médio prazo.

Expocine tem se consolidado como um dos principais encontros do setor audiovisual na América Latina. Quais foram os números da última edição — em público, negócios fechados e impacto para o mercado?

A EXPOCINE recebeu mais de 1.900 pessoas no ano passado, entre profissionais do mercado de exibição, distribuição e produção. Negócios fechados são números sempre relativos dentro da nossa indústria. Mas, de todos os cenários, todos são superlativos. Como a gente trabalha com toda a cadeia do mercado, podemos considerar que cada filme que foi lançado nos últimos 12 meses foi discutido, negociado e apresentado na EXPOCINE. Então, só a movimentação de bilheteria que a gente teve nos últimos 12 meses, passa dos 2 bilhões de reais.

Fora outras frentes que contemplamos no evento que vão desde fechamento de negócios para produção de filmes, venda de equipamentos, prestação de serviços, venda de projetos para produção audiovisual, programação desses títulos nos cinemas, comercialização de ingressos, até alimentação. Estamos falando que, praticamente, todos os negócios da indústria do audiovisual passam pela EXPOCINE.

O evento ainda tem recebido representantes de praticamente todos os países da América Latina, além de apresentar o que é importante do nosso mercado, principalmente, o mercado brasileiro, que no ano passado, por exemplo, teve um crescimento de 10%, tanto em bilheteria quanto em renda, comparado ao ano anterior.

É importante destacar o crescimento do audiovisual local, com suas produções nacionais, e o seu respectivo desempenho nos cinemas e nas demais janelas. No ano passado, vimos sucessos como “Ainda Estou Aqui”, “Minha Irmã e Eu”, “Nosso Lar 2”, “Mamonas Assassinas - O Filme” e “Arca de Noé”. E para fechar o ano com chave de ouro, “Auto da Compadecida 2” estreou no natal e, antes de fechar o ano, vendeu mais de 1 milhão de ingressos. Esses resultados consistentes do cinema nacional nos destacaram em relação a outros países do mundo. Quase todos os países do mundo fecharam em negativo de 2023 para 2024, e o Brasil teve um crescimento de 10% positivo.